terça-feira, 28 de agosto de 2007

O Enem

Dou-me conta de que não sou a única voz que clama no deserto, quando leio o blog do Reinaldo Azevedo. Tudo bem, eu sou meio egocêntrica.
O Reinaldo fez uma análise impagável da prova do Enem, que foi aplicada no último domingo. Ele é sempre muito engraçado, além de muito inteligente, e escreve muito bem. Por isso, segue abaixo uma parte do post dele sobre a prova do Enem. Leiam até o final, não vão se arrepender!

Redação
Naquela entrevista que concedeu à revista VEJA há 11 anos, o poeta Bruno Tolentino, morto em 17 de junho, decidiu que um de seus filhos não estudaria no Brasil. Segundo ele, não queria uma escola em que Caetano Veloso fosse considerado alta literatura. Bruno era muito exigente. O tema de redação deste ano traz como inspiração uma letra do grupo Engenheiros do Hawaii, outra dos Titãs e o fragmento de um texto da ONU. No caso dos Engenheiros, há versos inspirados como “todos iguais, todos iguais mas uns mais iguais que os outros”. Os Titãs emendam: “Todos os homens são iguais/ são uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros”. E a ONU arremata: “Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza”.

Aí propõe o examinador:
Todos reconhecem a riqueza da diversidade no planeta. Mil aromas, cores, sabores, texturas, sons encantam as pessoas no mundo todo; nem todas, entretanto, conseguem conviver com as diferenças individuais e culturais. Nesse sentido, ser diferente já não parece tão encantador. Considerando a figura e os textos acima como motivadores, redija um texto dissertativo-argumentativo a respeito do seguinte tema “O desafio de se viver com a diferença”

Não é uma proposta de redação, mas um teste ideológico. Um dos meus sobrinhos, filho da minha irmã, fez a prova: “Mandei ver, tio. Falei que índio praticar infanticídio é uma diversidade que eu não respeito”. E eu: “Cara, você fez isso? Então já se danou (eu empreguei outro verbo, confesso...)” E ele: “Claro que não, né, Tio? E eu sou besta? Tava na cara que era para elogiar a diversidade. Era uma prova petista do começo ao fim. Escrevi tudo o que eles queriam ler". Sábio rapaz. Já percebeu a semente do estado policial.

Mistificação paulo-freiriana
Há muito tempo a patrulha paulo-freiriana e adjacências vêm forçando a mão sobre os vestibulares — que exigiriam o conhecimento em disciplinas estanques. Aí o Enem faz o quê? Sem que as escolas tenham mudado (mantêm professores especialistas, felizmente), o governo aplica uma prova supostamente “interdisciplinar”. Há, por exemplo, sete questões que poderiam ser consideradas de “interpretação de texto” não fosse maior o propósito de marcar uma posição ideológica do que o de testar o entendimento do que está escrito.

Sabem aquele papo do “saber integral”? Então. Um texto sobre canavieiro serve a questões de estudos sociais, interpretação de texto, geografia, química, biologia e, bem..., matemática!!! Vejam que gracinha. Informa-se, por exemplo, que um cortador de cana ganha R$ 2,50 por tonelada e que, por dia, ele corta oito toneladas. Aí, então, o estudante é chamado a fazer uma conta. Leiam a questão quatro:

Considere-se que cada tonelada de cana-de-açúcar permita a produção de 100 litros de álcool combustível, vendido nos postos de abastecimento a R$ 1,20 o litro. Para que um corta-cana pudesse, com o que ganha nessa atividade, comprar o álcool produzido a partir das oito toneladas de cana resultantes de um dia de trabalho, ele teria de trabalhar durante
A - 3 dias.
B - 18 dias.
C - 30 dias.
D - 48 dias.
E - 60 dias.

Fez a conta, Mané? É isso aí. É a matemática achada na rua. O estudante tem de concluir que o cortador é uma pobre vítima desse capitalismo podre. Afinal, precisaria trabalhar 48 dias para comprar o combustível que o seu trabalho “produzira” em um!!! Como a gente sabe, cana nasce como mato, certo? Não é preciso preparar a terra, adubar, plantar, financiar o plantio, a colheita, a produção, o transporte até a usina, cuidar da parte industrial, ter laboratório de pesquisa, transportar depois o produto final, nada disso. É chegar, passar o facão naquele "mato" e ver escorrer o álcool. Trata-se apenas de uma estupidez. Ah, claro, vocês sabem: a diferença entre os R$ 20 (R$ 2,50 X 8) que o cortador ganha por dia e os R$ 960 que rendem em álcool as oito toneladas que ele cortou (R$ 1,20 X 100 X 8 = R$ 960) deve ser o que o marxismo chulé brasileiro chama "mais-valia"...

E como uma coisa puxa a outra, ainda ligado ao tema, temos, então, a questão 7, de interpretação de texto, notavelmente casada com a questão quatro, que seria de matemática. Oferece-se, então um mau poema de Ferreira Gullar para uma questão que beira um teste de demência:

O açúcar
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
[dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
(...)
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

A antítese que configura uma imagem da divisão social do trabalho na sociedade brasileira é expressa poeticamente na oposição entre a doçura do branco açúcar e
A - o trabalho do dono da mercearia de onde veio o açúcar.
B - o beijo de moça, a água na pele e a flor que se dissolve na boca.
C - o trabalho do dono do engenho em Pernambuco, onde se produz o açúcar.
D - a beleza dos extensos canaviais que nascem no regaço do vale.
E - o trabalho dos homens de vida amarga em usinas escuras.

Entenderam? A prova é toda ela feita desses encadeamentos — leiam o original. Trata-se de um exame temático — biocombustíveis, aquecimento global, respeito às diferenças e um pouco de, sei lá, saneamento talvez. Esses assuntos pautam todas as questões, a larga maioria, acreditem, no campo do que, no meu tempo, se chamava geografia — não a física, mas a humana. Convenham: não dá pra brincar de luta de classes na geografia física, a menos que se proponha a revolta da planície contra o Planalto — o que não seria má idéia, se é que me entendem...

Vamos falar um pouco de história? Aí vem este texto: “Após a Independência, integramo-nos como exportadores de produtos primários à divisão internacional do trabalho, estruturada ao redor da Grã-Bretanha. O Brasil especializou-se na produção, com braço escravo importado da África, de plantas tropicais para a Europa e a América do Norte. Isso atrasou o desenvolvimento de nossa economia por pelo menos uns oitenta anos.” É de Paul Singer, economista petista e auxiliar de Lula .

É evidente que não é proibido usar texto de um auxiliar do Apedeuta. Ocorre que o que vai acima não é história, mas ideologia. No caso, marxismo — expresso de forma explícita, para quem conhece, no trecho destacado em vermelho. Os “oitenta anos”, com a devida vênia, são puro chute. Não há um modelo para medir isso. Até meados do Segundo Império, o Brasil não ficava a dever aos EUA. As coisas degringolaram depois. Quando se trata de debater a escravidão, o texto de referência é do e militante negro Kabengele Munanga, um professor da USP com graduação em Antropologia Cultural na Universidade Oficial do Congo.

Texto extraído de http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/

3 comentários:

Ricardo Rayol disse...

Credo, isso que eu chamo de imposição ideológica, não gosto do tio rei mas esse texto tenho que concordar.

*Mr. Tambourine* disse...

Oi Ana! Realmente a gente sempre escreve temas iguais. Vai ver é um fluxo de pensamento. Sei lá, a modernidade possui várias facetas. Quem sabe uma delas é a transmissão de pensamento?
ahuhuahuahuhuahuahuahuhuahuahua

Então, o que falar do texto?
Engraçado como acusam a esquerda de policiar a todos. E agora a direita faz o mesmo? Seria farinha do mesmo saco? Não sei.
Mas tenho a certeza que a direita vêm adotando as táticas erradas da esquerda. Este policiamento ideológico é uma. Isto não funciona. Não convence ninguém a não ser aqueles que fazem parte da policia. Para se ter uma policia partidária é necessário ter o que?
MILITANTES.
Pronto! Por isto que o policiamento ideológico partidário da direita não convence ninguém. Cadê os militantes? As pessoas que vestem a camisa e vão para o centro de uma cidade. Que gritam a todos que o importante é o liberalismo econômico? Que o que a esquerda tá fazendo é lavagem?
A direita não tem nada disto.
Pode acusar de lavagem ideológica, mas sem uma base não dá.
Se formos levar somente estas questões do ENEM, diria que isto está muuuuiiito longe de ser lavagem cerebral. Os grandes pensadores, aqueles com construíram as ciências humanas, tinham tendência de encontrar na esquerda a saída. Logo, nada disto é diferente do que os livros de história de ensino médio falam. E eles são baseados nestes grandes escritores.
E tem mais, a educação no Brasil não foi feita pela esquerda. O material de didático não foi produzido pela esquerda. E olha que eu estudei na época do Collor e do FHC... E os livros continuam do mesmo jeito.

Sei lá. Só diria que este Reinaldo foi muito infeliz. Faltou um pouco de sociologia, história e ciência política no texto dele. Resumindo, eu, sinceramente e com todo respeito, não perderia horas lendo o texto dele. Só li porque foi você que indicou.
Que moral ein?
huahuahuahuahuahuhuahuahuaa

No mais, bjao!!

*Mr. Tambourine* disse...

Ana!!!!!
Você, realemente, pode me indicar que eu leio. Apesar das nossas convicções serem diferentes, acho você uma pessoa inteligente e articulada. Logo, a discussão é sempre bem-vinda....

Este link é muto bom!
Recomendo a leitura.
Você vai entender o que a por trás das declarações - para mim infelizes- do Reinaldo. Sem querer parecer consipiração, mas já sendo:

http://viomundo.globo.com/site.php?nome=Bizarro&edicao=1185

http://amigosdopresidente.blogspot.com

No ultimo link procure um post sobre livros didáticos...

Bjao ana!