“Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.”
Pe. António Vieira
Fragmento do Sermão do Espírito Santo, capítulo III (1657)
O padre António Vieira, português de Lisboa que chegou ao Brasil com seis anos em 1614, foi um missionário da Companhia de Jesus que dedicou a sua vida à catequização dos índios além de criticar a escravidão e a diferenciação entre cristãos-novos e cristãos-velhos.
O que me chama a atenção neste trecho do Sermão do Espírito Santo, escrito por Vieira, é a atualidade do que está contido nestas linhas. Ele faz uma comparação entre a fé e a maleabilidade da crença dos povos europeus e das gentes nativas das terras do Brasil – aos quais ele chama de brasis. Em um trecho que antecede este acima transcrito o padre conta uma estória que tem como protagonista os apóstolos e como enredo o “ide” -“ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” Mc 16:15 – último mandamento de Jesus aos seus apóstolos antes de sua assunção aos céus. Na tal estória, o padre diz que Jesus teria “repartido” o mundo e dado cada região a um apóstolo:
“Repreendeu Cristo aos discípulos da incredulidade e dureza de coração, com que não tinham dado crédito aos que o viram ressuscitado, e sobre esta repreensão os mandou que fossem pregar por todo o mundo. — A S. Pedro coube-lhe Roma e Itália; a S. João, a Ásia Menor; a São Tiago, Espanha; a S. Mateus, Etiópia; a S. Simão, Mesopotâmia; a S. Judas Tadeu, o Egito; aos outros, outras províncias, e finalmente a Santo Tomé esta parte da América em que estamos, a que vulgar e indignamente chamaram Brasil.”
A explicação dada pelo padre ao fato de ter ficado Tomé com o Brasil é a seguinte:
“E como Santo Tomé, entre todos os apóstolos, foi o mais culpado da incredulidade, por isso a Santo Tomé lhe coube, na repartição do mundo, a missão do Brasil, porque, onde fora maior a culpa, era justo que fosse mais pesada a penitência.”
Pois é. Como paga pela sua incredulidade, a penitência de Tomé seria fazer crer o povo mais incrédulo da face da Terra. Porque da mesma maneira que criam com facilidade em tudo o que lhes oferecia, descriam e voltavam aos seus antigos costumes. Os “brasis” eram como a murta, extremamente maleáveis, suscetíveis a qualquer forma que se lhe quisesse dar, mas bastava uma desatenção - o menor descuido que fosse – e, tal qual a murta que tendo tomado a forma dada pelo jardineiro, por um descuido deste, dela começam a crescer galhos e folhas desordenadas que lhes fazem voltar a seu estado natural de mato, arbusto sem forma. Enquanto que, ao contrário dos brasis sem personalidade, os europeus eram como o as estátuas de mármore que uma vez esculpidas resistem aos tempos e jamais voltam a sua forma original de pedra bruta. Porque o mármore é duro e rijo e, sendo difícil de talhar, requer árduo e demorado trabalho, mas uma vez terminada a escultura esta não se desfaz ou volta a sua forma original, ou seja, com o mármore não há trabalho desperdiçado. O contrário acontece com a murta, que não exige muito esforço do jardineiro para se deixar esculpir, mas dentro em breve o trabalho daquele será em vão, pois a sua bela escultura voltará a ser um disforme e verde arbusto.
É extraordinário ver que os brasis permanecem estátuas de murta e os europeus estátuas de mármore. E digo em relação à religião também. O Brasil tem hoje, talvez, todas as religiões se fazendo presentes e sendo representadas em seu solo. Católicos, candoblesistas, umbandistas, feiticeiros, macumbeiros, espíritas, mulçumanos, indus, budistas, esotéricos, protestantes das mais variadas denominações – e cada dia aparece uma nova denominação – sendo estes últimos os que mais crescem no país, segundo os números do IBGE. O Brasil tem um povo dado a religiosidade, ao sincretismo religioso, às simpatias, aos patuás. Tudo que se oferece a este povo é aceitado de bom grado. Quem não conhece alguém que, se dizendo católico, crê em reencarnação, faz simpatia pra conseguir casar, tem medo de assombração, freqüenta mesas brancas, vai consultar adivinhadores ou até aproveita a sexta-feira pra se vestir de branco e bater um tambor no terreiro de dona Mariazinha. Isso sem falar naqueles que se dizem ateus graças a Deus, ou em protestantes que se pegam em simbolismos como por a água em cima da televisão para ser abençoada, freqüentar sessões de descarrego, ver anjos, comprar o óleo da unção ou quaisquer outros artigos vendidos por homens de má fé que gostam de se aproveitar da credulidade de um povo idólatra. Temos também aqueles que não deixam de pular as sete ondas no ano novo, ou de se vestir de branco pra ter paz... Coisas tão corriqueiras que, por mais que não nos demos conta, são crendices fruto de um sincretismo religioso de um poso sem personalidade há exatos 507 anos. Enquanto isso, fiquei sabendo hoje através de um casal de missionários que na Espanha menos de 0,4% é membro ou congregado de igrejas protestantes, sendo a metade desta porcentagem composta por imigrantes que moram na Espanha. Ou seja, os espanhóis são ainda estátuas de mármore que não esqueceram do seu passado, pelo contrário, o que são hoje é fruto de um árduo trabalho feito por seus escultores há séculos. Muitos missionários voltam, desistem, por não verem o seu trabalho dar frutos. Porém, apesar da maioria da população se dizer católica, poucos são os praticantes. A rigidez que lhes faz ser mármore está no cuidado das tradições, não na prática destas.
Apesar de sermos nós murtas e eles mármores, nas estátuas de murta crescem a cada dia mais galhos que as deformam, mas ate as sólidas estátuas mármore estão perecendo. António Vieira não se deu conta de que, por mais que demore, a ação do tempo e a erosão não perdoam nem as mais belas estátuas do mais alvo mármore.